Revolução Tecnológica: Virilio vs Baudrillard

Conclusões finais

Focando-me nas questões-chave que representem potenciais eixos de desacordo entre as duas visões de Virilio e Jean Baudrillard e no sentido da revolução tecnológica, resumo assim:

Ambos se concentram nas consequências da nossa aceitação e utilização dos media e das tecnologias. Para Virilio, media e tecnologias da captação, reprodução e difusão da imagem contribuem para a videografia, a satelização e uma aceleração perigosamente incompreensível do mundo. Para Baudrillard, os media (e as tecnologias de comunicação e informação) impedem qualquer interpretação fiável sobre o que nos rodeia. Ambos vão ao século XIX, e mais atrás, buscar a essência do conhecimento, a génese e os protótipos das tecnologias que as pessoas (do mundo ocidentalizado e desenvolvido) têm e usam. Ambos fazem uma leitura da nossa contemporaneidade na viragem do século XX.

Virilio segue em frente e alerta para os riscos do futuro, palavra recorrente em Inércia Polar, 3 vezes mais do que em Simulacros e Simulação. Baudrillard explora o seu tempo, o nosso tempo. E explica-o na sua linguagem semiótica e da sua perspetiva niilista, “cuja principal característica é uma visão cética radical em relação às interpretações da realidade, que aniquila alguns valores e convicções” [1].

Baudrillard faz isso, aniquila-nos o real, faz-nos duvidar do que consideramos certo e seguro: “hoje em dia é a precessão do neutro, das formas do neutro e da indiferença.” (p. 196)

Constato, aceito, assumo, analiso a segunda revolução, a do século XX, a da pós-modernidade, que é o imenso processo de destruição do sentido, igual à destruição anterior das aparências. O que pelo sentido mata, pelo sentido morre.

A cena dialéctica, a cena crítica estão vazias. Já não há cena. E não há terapia do sentido ou terapia pelo sentido: a própria terapia faz parte do processo generalizado de indiferenciação. A própria cena da análise tornou-se incerta, aleatória: as teorias flutuam […].

A própria análise talvez seja o elemento decisivo do imenso processo de congelação do sentido.

Jean Baudrillard, Simulacros e Simulação (p. 197)

Desenvolvendo a síntese…

Hoje, com a velocidade da luz, inventamos um tempo acidental. Isto é, um instante [accident, no original] que não participa nem do passado nem do futuro, e que, por conseguinte, é inabitável.

Paul Virilio, Penser la Vitesse (00:02:32.29 – 00:02:49.01)

Na minha interpretação de Virilio, acidente é sinónimo de incidente, não necessariamente de catástrofe. Apesar de todos os avanços, descobertas e centros tecnológicos (MIT incluído, esse “olimpo da pesquisa tecnológica” [2]) decorrerem ou estarem relacionados com a tecnologia de guerra. Neste sentido, acidente pode ser uma consequência de uma descoberta para a destruição ou potencialmente destruidora. Mas também pode ser algo que sucede por acaso, uma peripécia ou aquilo que altera o desenrolar dos acontecimentos.[3] Baudrillard usa o termo peripécias por 13 vezes, e sempre para reduzir ocorrências históricas ou mediáticas à sua insignificância: “os acontecimentos continuam no solo, as peripécias são mesmo cada vez mais, dado o processo mundial de contiguidade e de simultaneidade da informação. Mas subtilmente perdem o sentido” (Simulacros e Simulação, p. 51)


Virilio vê essa perda de sentido desta forma:

Com o desenvolvimento das auto-estradas da informação, estamos diante de um novo fenómeno: a desorientação. Uma desorientação fundamental que complementa e completa a desregulamentação social e a desregulamentação dos mercados financeiros, cujos efeitos nocivos todos nós conhecemos. Uma duplicação da realidade sensível está sendo preparada entre o real e o virtual. O advento de uma espécie de estereo-realidade. Uma perda de referência do ser. O ser está in situ, e aqui e agora, hic et nunc. Mas isto está a ser perturbado pelo ciberespaço e por informações instantâneas e globalizadas.

Paul Virilio [4]

Além do ciberespaço se tornar uma droga,[5] há ainda “uma delegação do poder à máquina. A velocidade de cálculo de algoritmos estabelece a nova paisagem.” (Penser la Vitesse, 00:04:11.04 – 00:04:19.05)

No campo do ciberespaço, o campo virtual, não temos muita coisa. Estamos a inventar essa planificação estratégica, esses métodos, nos países do mundo, o que torna nosso trabalho emocionante, mas preocupante, pois não podemos basear-nos no passado e numa literatura que responderia às nossas perguntas.

Paul Virilio, Penser la Vitesse (00:04:44.23 – 00:05:02.22)

Ora este incurso e maravilhamento, esta ambientação e exploração do virtual e do ciberespaço em (co)dependência e delegação do poder à máquina são o âmago do sentido da revolução tecnológica para Virilio.

Não há referências ou orientações sobre como fazer as coisas. Estamos a aprender com os nossos acidentes e ao mesmo tempo, acrescento eu, estamos a criar uma forma de inteligência paralela à nossa, mas que em breve superará a nossa.

A tecnologia per si não é boa ou má. Virilio diz claramente que nada tem contra a tecnologia e assume-se curioso e ansioso por acompanhar o futuro. O modo como é usada sim. A tecnologia que poderia potenciar a autonomia e desafogo dos povos mais pobres é monopolizada por uma minoria para especularem financeiramente.

Outros, menos astutos, puseram a velocidade a serviço das finanças e não da economia. 

Paul Virilio, Penser la Vitesse (00:08:01.06 – 00:08:07.08)

Tal como Baudrillard não é otimista, Virilio não é pessimista.

Alguma coisa está a fermentar que se parece com uma “cibercultura”. As novas tecnologias só poderão contribuir para a melhoria da democracia se combatermos, antes de mais, a caricatura de uma sociedade global em preparação pelas multinacionais, que se lançam de braços abertos na construção das auto-estradas da informação.

Paul Virilio [6]

Virilio é preocupado com o futuro. Realista com o presente e esperançoso quanto ao futuro e ao potencial do espírito crítico e pensante dos homens.

Futuro é um termo que Baudrillard não parece privilegiar em Simulacros e Simulação. Baudrillard concentra-se no tempo presente. A questão-chave, para este autor, é a perda de sentido, a redução de sentido, a implosão de sentido provocada pelos media sobre tudo o que apreendemos como real e realidade. Tudo isso é uma miragem, um holograma do que já foi.

O que em Virilio é em videografia, em Baudrillard é hiper realidade, sobrecarga cognitiva, não fiável, desdenhável. Niilista assumido, constata, aceita e assume “o imenso processo de destruição das aparências (e da sedução das aparências) em benefício do sentido” Simulacros e Simulação, p. 196), um sentido que radica em estado mais puro no século XIX, onde Virilio vai constantemente buscar referências e factos históricos para fazer a ponte entre o que já foi e o que agora é o estado da arte em termos tecnológicos.

O ponto chave e diferenciador entre Baudrillard e Virilio é a forma como constroem as suas visões e o momento (presente ou projetado para o futuro) em que colocam a tónica dos seus discursos.

Em Baudrillard temos a noção de que tudo atualmente é  uma projeção do que não está: “estamos numa lógica de simulação que já nada tem a ver com uma lógica dos factos e uma lógica dos factos”. (Baudrillard, Simulacros e Simulação, p. 26) Já em Virilio sua forma de expressão “é a velocidade, é a aceleração do real.”[7]

Mas há pontos de contacto entre Virilio e Baudrillard.

Virilio alerta para as consequências da nossa viagem sem regresso nesse “Último Veículo” estático que é o “automóvel do audiovisual” (Virilio, Inércia Polar, p. 39) e para os efeitos das  “tecnologias do tempo real” (Virilio, p. 32). Este autor resume assim o nosso status quo em termos comerciais, geográficos, sociais e históricos:

Como toda a presença só está presente à distância, a telepresença na era do comércio globalizado só pode ser estabelecida na maior distância possível.  Esta lacuna estende-se agora aos antípodas do globo, de uma margem à outra da realidade actual, mas de uma realidade meta-geofísica que ajusta de perto os telecontinentes de uma realidade virtual que monopoliza a maior parte da actividade económica das nações e, inversamente, desintegra as culturas precisamente localizadas no espaço físico do globo.

Na ausência de um fim para a história, é portanto o fim da geografia que estamos a testemunhar. Onde as antigas distâncias do tempo produziram, até a revolução dos transportes do século passado, a distância favorável das várias sociedades, na era da revolução das transmissões que inicia o feedback contínuo das atividades humanas gera a ameaça invisível de um acidente dessa interatividade generalizada […]. [8]

Virilio sintetiza bem o cerne das questões levantadas para esta nossa discussão:

o século XXI será a desorientação, quer dizer, a perda de todas as referências – se a humanidade continuar desse jeito, e ela não continuará. Portanto, eu não creio de maneira alguma no fim do mundo. Mas o que eu quero dizer é a desorientação: não sabemos mais onde estamos nem no espaço nem no tempo.

Paul Virilio [9]

Baudrillard certamente concordaria com o “meu” autor. Porém, cético e descrente, niilista, Baudrillard não desoculta a luz ao fundo do túnel e prefere a “violência teórica” que considera ser o “único recurso que nos resta” (p. 200).

Também nisso Baudrillard e Virilio se geminam: o primeiro deita tudo por terra, o segundo alerta para os riscos trucidantes da velocidade, da virtualização e satelização de tudo. Ambos se detêm nos efeitos da imagem e dos media.

É preciso estar consciente de que, seja qual for a maneira como a análise proceda, ela procede no sentido da congelação do sentido, ajuda à precessão dos simulacros e das formas indiferentes. O deserto aumenta.

Implosão do sentido nos media. Implosão do social na massa. Crescimento infinito da massa em função da aceleração do sistema. Impasse energético. Ponto de inércia.

Destino de inércia de um mundo saturado. Os fenómenos de inércia aceleram-se (se assim nos podemos exprimir). 

Jean Baudrillard, Simulacros de Simulação (p. 198)

Assim,

os factos são desagregados pelos efeitos de interactividade das telecomunicações. A realidade TELETÓPICA leva a melhor sobre a realidade TÓPICA do acontecimento. […]

Hoje em dia, como vimos, o único veículo eficaz é a imagem. Uma imagem em tempo real que vem substituir o espaço onde se desloca ainda o automóvel

Paul Virilio, Inércia Polar (p. 29)

Consequência disso, com a qual Baudrillard concordaria: “as tecnologias extra-veiculares da interactividade instantânea exilam-nos de nós próprios e fazem-nos perder a derradeira referência psicológica” (Virilio, p. 125)

Por outro lado, é pela velocidade das imagens que se chega ao “advento do homem sentado ou, pior ainda, do homem deitado”, essa “«involução comportamental negativa» que conduz a espécie para uma fixidez patológica”. (Virilio, Inércia Polar, p. 106)

Futuramente, é nesse estado que se organizará a vida humana, segundo Virilio, em imobilidade cinestésica.[10] As tecnologias da interatividade, “perpétuo prolongamento da sedentarização urbana inicial” (Virilio, p. 126), poderão também desconectar o Homem do seu corpo e da sua mente:

esse teleactor que não se precipitará mais num qualquer meio de. deslocação física mas unicamente noutro corpo, um corpo óptico para ir mais longe sem sair do lugar, para ver com outros olhos, tocar com outras mãos que não as suas, para estar lá longe sem Já estar efectivamente, estranho a si próprio, trânsfuga do seu próprio corpo, para sempre exilado…

Paul Virilio, Inércia Polar (p. 126)

Caminhamos, pois, para a virtualização da existência em estado máximo.

Depois da televisão, a tele-acção e a tele-presença vão, de facto, retomar o fenómeno de possessão de um corpo próprio por uma imagem, uma imagem mental. Este velho mito do desdobramento, não apenas da personalidade frágil do actor, mas sobretudo da realidade do mundo exterior, para esse «tele·actor» agindo instantaneamente num ambiente geográfico tornado por sua vez virtual… 

Paul Virilio, Inércia Polar (p. 126)

  • [1] Mais sobre Niilismo aqui.
  • [2] Penser la Vitesse, 00:11:25.05.
  • [3] Leia-se mais sobre a definição de incidente, nomeadamente na sua raiz latina.
  • [4] Traduzido do artigo de Virilio “Alerte dans le Cyberespace!” de 1995.
  • [5] Leia-se conclusão do artigo já mencionado de 1995.
  • [6] Virilio, 1995, artigo já citado.
  • [7] Como ele diz, a velocidade é a sua “língua estrangeira” (entrevista de Virilio ao Le Monde Diplomatique, traduzida e publicada no Diário Liberdade a 15 junho de 2011).
  • [8] Traduzido do artigo original de Virilio “Un Monde Surexposé”, escrito anos depois de Inércia Polar.
  • [9] Entrevista de Virilio ao Le Monde Diplomatique, traduzida e publicada no Diário Liberdade a 15 junho de 2011.
  • [10] Cinestesia – sentido pelo qual se tem a perceção dos membros e dos movimentos corporais (Infopédia).

Referências

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