Inferências a partir da leitura de Pierre Lévy

Cibercultura – um fenómeno?
O que é um fenómeno? A cibercultura é um fenómeno? Consultando o dicionário, fenómeno é:
- Tudo o que está sujeito à acção dos nossos sentidos ou nos impressiona de um modo qualquer (física ou moralmente).
- Tudo o que na natureza é momentâneo e sucede poucas vezes.
- Tudo o que é extraordinário, raro ou novo; coisa surpreendente.
Será a cibercultura algo momentâneo e errático? Tendo em conta as últimas décadas, bem como a evolução tecnológica descrita por Pierre Lévy em Cibercultura, não nos parece.
Diz-nos o autor que “a cibercultura expressa o surgimento de um novo universal, diferente das formas culturais que vieram antes dele no sentido de que ele se constrói sobre a indeterminação de um sentido global qualquer.” (Lévy, p. 1999, p. 12)
Deste modo, a cibercultura é uma manifestação contemporânea da ação humana em todos os domínios de ação e de interação possíveis, tangíveis e intangíveis e um instantâneo em constante devir da ação dos homens. Não a podemos conceber como um fenómeno, tal como é definido em 2.
Será a cibercultura algo extraordinário, raro ou novo?
Só para quem a não reconhecer, quem se autoexcluir de certas ações mediadas pelos computadores, escapar aos interfaces de entrada de dados e não constar de nenhum tipo de software… Surpreendente, sim. Impactante, também. Mas isso será a nossa reação face aos resultados que as pessoas obtêm ao interagir com computadores, interfaces e softwares.
Exemplos de cibercultura
Na sociedade moderna (ocidental ou ocidentalizada), poderá alguém estar ausente da rede, invisível às suas trocas de informação? Quem de nós não possui ou utiliza cartões de crédito, máquinas de multibanco, cartão de cidadão? Eis três manifestações muito comuns da nossa presença e interação na rede.
Com elas somos imediatamente situados e localizáveis no mapa de atividade reticular que constitui a cibercultura. Georeferenciam-nos, definem-nos, permitem-nos interagir com tudo o que faz parte da nossa célula social (bens, serviços, educação, entretenimento), com todas as pessoas que nos rodeiam, mesmo que sejamos avessos à utilização da Internet, dos computadores ou dos dispositivos móveis.
Mas cibercultura é mais. Compreende todas as formas de interação das pessoas com a tecnologia nos mais diversos planos da sua vida:
- a participação em fóruns para discussão ou recolha de informações sobre assuntos do seu interesse;
- a participação em redes sociais – umas propiciam a exposição de facetas sua vida (Facebook, Instagram), outras prestam-se a interações mais profissionais (Twitter, LinkedIn) e outras ainda se prestam à organização de conteúdos em painéis de signficação personalizados (Pinterest), ressalvando-se ainda a utlização que marcas, instituições e serviços fazem destas redes para definir e impor a sua presença online e interagir com os seus pares e com todos nós;
- a utilização de ferramentas para curadoria e publicação de conteúdos em redes sociais (Hootsuite, Buffer, Sproutsocial, Tweetdeck, CoSchedule) para determinados perfis de utilizadores, após estudo “de mercado” e definição de uma estratégia de presença digital por parte de empresas, instituições e marcas;
- a utilização de ferramentas de SEO (otimização para motores de busca) para fazer com que um site ou página se sobreponha à concorrência nas pesquisas na Internet;
- o estudo em linha, parcialmente ou totalmente a distância, em contexto formal e institucional (UAb), ou não (Udemy);
- a utilização de ebanking, seguros e (agendamento ou consulta de) prestadores de serviços de saúde online;
- a programação, monitorização, registo e partilha de atividade física, com integração em algumas das redes sociais já referidas (Strava, Fitbit, Endomondo, Runtastic, Nike+);
- a programação, monitorização, registo e partilha de regimes alimentares, perdas e ganhos de peso, bem como a partilha e consulta de receitas via aplicativos como (MyFitnessPall ou MyFatSecret)
- a utilização de aplicativos “mais contemplativos” para desaceleração do corpo e da mente, nomeadamente para regularização do sono, meditação, mindfulness (Calm) ou yoga;
- os jogos online (multiplayer ou não);
- formas de trabalho colaborativo mediados por programas na nuvem, suites de software e apps especificamente criados para esse efeito;
- a leitura e audição de conteúdos online ou via apps (Kindle Cloud Reader, Scribd, Amazon Audible);
- a utilização de aplicativos de resumo e curadoria de conteúdos, nomeadamente de livros (Blinkist);
- a tradução de conteúdos (localização de sites, jogos, filmes ou vídeos além de todo o tipo de textos) cada vez mais solicitada e conseguida na nuvem (Matecat, MemoQ Cloud);
- a consulta de portais de informação nacionais para consultar, solicitar ou obter documentação (ePortugal);
- a organização de sites internacionais por parte de um ou mais países para divulgar, solicitar e normalizar informação numa ou mais línguas (UE, Governo Português, Visite Portugal);
- aplicativos e sites específicos para encontrar e interagir com outras pessoas a partir de um perfil e lista de interesses e objetivos (explicitados como) comuns.
A partir da leitura de Lévy…
podemos considerar cibercultura como um fenómeno no sentido em que é algo sujeito à ação dos nossos sentidos, táteis, visuais, auditivos, e algo marcante, física e moralmente também, pois integra, informa e condiciona muitas das nossas práticas diárias. Um conceito que encaixa na primeira definição de fenómeno que encontrámos.
De facto, Lévy tem a preocupação de definir cibercultura logo no início do seu livro:
“cibercultura”, especifica aqui o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço.
As interações das pessoas com a tecnologia disponível – toda a tecnologia – fazem com que encontrem e interajam com uma série de textos, signos e interpretações desses textos (paratextos), levando ao tal “dilúvio informativo que ameaça fazer desaparecer a sociedade contemporânea”.
Para Lévy, “a cibercultura leva a co-presença das mensagens de volta a seu contexto como ocorria nas sociedades orais, mas em outra escala, em uma órbita completamente diferente. A nova universalidade não depende mais da auto-suficiência dos textos, de uma fixação e de uma independência das significações. Ela se constrói e se estende por meio da interconexão das mensagens entre si, por meio de sua vinculação permanente com as comunidades virtuais em criação, que lhe dão sentidos variados em uma renovação permanente.” (Lévy, 1999, p. 12)
Segundo Lévy, o potencial dos computadores é muito mais plástico e moldável, é um amplificador exponencial de significação, de conceitos e de interpretações. Isto eleva a abstração do virtual ao infinito, sendo que, por virtual, queremos dizer não físico, não orgânico ou mecânico. Ora, em termos puramente matemáticos, o infinito é uma indeterminação.
Perante a ausência de um cânone de “textos” e de “interpretações” únicos e oficiais, todos nós nos sentimos em sobrecarga de referências (e, por vezes, em sobrecarga cognitiva). Perdidos num imenso e alteroso oceano de “textos” e “significações”, como (re)encontrar a ordem? Como reorganizar o caos?
Conseguirão as pessoas ou os grupos de pessoas preservar o património cultural essencial da sociedade humana?
Para Pierre Lévy, a resposta parece estar em descentralizar e “descanonizar” essas referências. Ou seja, as instituições e os cidadãos devem organizar-se por forma a chegar a soluções que sirvam o seu contexto e as suas necessidades.
É o que propõe para o ensino, por exemplo. Por isso, postula:
“Vemos como o novo paradigma da navegação (oposto ao do “curso”) que se desenvolve nas práticas de levantamento de informações e de aprendizagem cooperativa no centro do ciberespaço mostra a via para um acesso ao conhecimento ao mesmo tempo massificado e personalizado.” (Lévy, 1999, p. 154)
E acrescenta:
“As universidades e, cada vez mais, as escolas primárias e secundárias estão oferecendo aos estudantes as possibilidade de navegar no oceano de informação e de conhecimento acessível pela Internet. Há programas educativos que podem ser seguidos a distância na World Wide Web. Os correios e conferências eletrônicas servem para o tutoring inteligente e são colocados a serviço de dispositivos de aprendizagem cooperativa.” (idem, ibidem)
(…)
“De fato, as características da aprendizagem aberta a distância são semelhantes às da sociedade da informação como um todo (sociedade de rede, de velocidade, de personalização etc.). Além disso, esse tipo de ensino está em sinergia com as “organizações de aprendizagem” que uma nova geração de empresários está tentando estabelecer nas empresas.” (idem, ibidem)
O papel dos professores e os formatos e modalidades de ensino estão, portanto, em mudança. A ênfase é colocada na aprendizagem coletiva e na qualidade das aprendizagens. Afinal, pessoas que agora estejam na casa dos quarenta anos ou mais “aprenderam” a usar a tecnologia uns com os outros e não necessariamente nos bancos da escola e em contexto formal e modalidade presencial. Porque, quando estudavam, muitas coisas que agora são correntes e generalizadas não existiam ainda.
“Procura-se menos transferir cursos clássicos para formatos hipermídia interativos ou “abolir a distância” do que estabelecer novos paradigmas de aquisição dos conhecimentos e de constituição dos saberes. A direção mais promissora, que por sinal traduz a perspectiva da inteligência coletiva no domínio educativo, é a da aprendizagem cooperativa.” (Lévy, 1999, p. 155)
Por outro lado, o “segredo” de um ensino moderno e atual de reside numa aceitação explicita da cibercultura e de práticas pedagógicas informadas e alinhadas com estas novas formas de aceder e de interagir com o saber:
“Não se trata aqui de usar as tecnologias a qualquer custo, mas sim de acompanhar consciente e deliberadamente uma mudança de civilização que questiona profundamente as formas institucionais, as mentalidades e a cultura dos sistemas educacionais tradicionais e sobretudo os papéis de professor e de aluno.” (Lévy, 1999, p. 156)
No plano educativo como no empresarial, bem como no plano internacional, há assimetrias e desigualdades.
“As performances industriais e comerciais das companhias, das regiões, das grandes zonas geopolíticas, são intimamente correlacionadas a políticas de gestão do saber. Conhecimentos, savoir-faire, competências são hoje a principal fonte da riqueza das empresas, das grandes metrópoles, das nações.” (Lévy, 1999, p. 160)
As assimetrias “na gestão dessas competências, tanto na escala de pequenas comunidades como na das regiões” poderão atenuar-se ou anular-se graças à comunicação em pleno ciberespaço e com o contributo da cibercultura, se pessoas, empresas, regiões e países conceberem “modos de reconhecimento dos saberes que possam prestar-se a uma exposição na rede da oferta de competência e a uma conduta dinâmica retroativa da oferta pela demanda.” ( idem, ibidem)
Olhai as árvores de conhecimentos
E assim chegamos ao ideal de Lévy, que, juntamente com Authier, propõe “árvores de conhecimentos” ou de competências (comportamentais e teóricas).
Define-as como “um método informatizado para o gerenciamento global das competências nos estabelecimentos de ensino, empresas, bolsas de emprego, coletividades locais e associações.” ( Lévy, 1999, p. 162)
Já implementadas em algumas empresas francesas de referência, permitem a adequação das pessoas ao seu contexto e a personalização do contexto.
Deixa, assim de haver cânone cego às necessidades e potencialidades de cada núcleo regional, social ou nacional. Deixa de haver um estatismo facilmente ultrapassável rumo ao obsoleto. Passa a ser possível que “toda a diversidade de suas competências seja reconhecida, mesmo as que não foram validadas pelos sistemas escolares e universitários clássicos. Crescendo a partir das autodescrições dos indivíduos, uma árvore de conhecimentos torna visível a multiplicidade organizada das competências disponíveis em uma comunidade. Trata-se de um mapa dinâmico, consultável na tela, que possui de fato o aspecto de uma árvore, e cada comunidade faz crescer uma árvore de forma diferente.” ( idem, ibidem)
Referências
Lévy, P. (1999). Cibercultura. São Paulo: Editora 34. Recuperado de: https://pt.scribd.com/doc/52113319/Pierre-Levy-Cibercultura
Lévy, P. (s.d). O que é o virtual? recuperado de: https://www.youtube.com/watch?v=sMyokl6YJ5U&feature=youtu.be
“fenómeno”. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Recuperado de: https://dicionario.priberam.org/fenómeno