Cibercultura, boa ou má? Trouxe benefícios e vantagens? Quebrou correntes de relacionamentos humanos? Favoreceu o capitalismo? Perdeu-se a noção do real devido ao virtual? É necessário estar sempre conectado e informado? Ou essa informação não passa de uma mera desinformação?
Muitos filósofos e pensadores têm discutido sobre estas ambiguidades, mas a verdade é que as mudanças nunca foram pacíficas e totalmente benéficas e 100% aceites… levam tempo.
Levantadas estas questões sobre o fenómeno da Cibercultura, e estando em debate as posições de Jean Baudrillard e Paul Virilio, surgiram as reflexões que se seguem, identificadas com a posição de Virilio (que me coube defender em fórum -atividade 3).
… eu quero dizer que “o pior provoca o melhor”
– Paul Virilio
O fenómeno da cibercultura levou dois filósofos contemporâneos a ter duas posições densas sobre as nossas circunstâncias. Nem me atrevo a dizer o “real”. Pois, para Baudrillard, o real não existe. O que existe é cópia e a reprodução das projeções do real. Logo, podemos adivinhar que a sua posição não é muito otimista face à revolução tecnológica. As tecnologias não são fac-símile credível do mundo que conhecemos ou do que nos está longe ou distante, porque, ampliando os cantos de sereia do cinema e da televisão, contribuem para a hiper-realidade.
Nesse sentido, a cibercultura, tal como a entende Lévy [1] e tu nos recordas, querida moderadora, pulverizou, matou o real. Mais concretamente, a imagem e os meios de comunicação social (sobretudo a televisão), replicam a ilusão do real, projetam sobre nós a ausência desse real. Algo a que o nosso colega Luís referiu também neste fórum.
Para Baudrillard, esse obcecado caçador da precessão semiótica, a convergência das telecomunicações com a informática, não nos dá traz nada de bom: “Estamos num universo em que existe cada vez mais informação e cada vez menos sentido” (Baudrillard, Simulacros e Simulação, p. 103).
Uma das hipóteses que o autor coloca e que defende é que: “A perda do sentido está diretamente ligada à acção dissolvente, dissuasiva, da informação, dos media e dos mass media” (Baudrillard, p. 104).
Com que outra coisa sonham os media senão com ressuscitar o acontecimento pela sua simples presença? Todos o deploram mas todos estão secretamente fascinados com essa eventualidade. Essa é a lógica dos simulacros, já não é a predestinação divina, é a precessão dos modelos, mas é igualmente inexorável. E é por isso que os acontecimentos já não têm sentido: não é que sejam insignificantes em si próprios, é que foram precedidos pelo modelo, com o qual o seu processo mais não faz que coincidir. (Baudrillard, p. 74)
Onde Lévy vê comunicação, interação, Baudrillard veria implosão. Digo veria, porque Baudrillard concentra-se tanto com a anulação dos pólos, que se passa ao lado das redes e da tecnologias que nos interessam aqui neste fórum. Certo, não estariam tão desenvolvidas aquando da escrita de Simulacros e Simulação (1981), mas Baudrillard seria alguém informado. Não consegui ainda encontrar o termo Internet no seu texto. Será porque a Internet moderna terá surgido em meados dessa década. A palavra computador(es) aparece 5 vezes ao lado de termos como “máquinas cibernéticas” (imagino o autor a dizer isto com voz cavernosa e baixa…).
E há pior. Às perguntas que fazes, Ester (É necessário estar sempre conectado e sempre informado? Ou essa informação não passa de uma mera desinformação?), de certeza que te respondia com um veemente “Não!” primeiro e um seco “Obviamente que sim.” depois. É que, para Baudrillard: “o computador pode muito bem funcionar como uma supermáquina mecânica, um super-robot, máquina de sobrepotência, expoente do génio produtivo dos simulacros de segunda categoria” (p. 157).
Mesmo sem ter a curiosidade que Virilio tinha saber mais sobre o futuro, nomeadamente o da revolução tecnológica, Baudrillard poderia confiar mais no sentido crítico coletivo.
Certamente que hoje Baudrillard reiteraria, da forma mais barroca que conseguisse, que a cibercultura atual poderá ser cibernética, mas pouco culta. A visão de Baudrillard parece ter dois efeitos (que Virilio, felizmente, anula): exasperar e deprimir.
Em Simulacros e Simulação, a palavra redes, que Lévy e nós associamos a redes sociais, comunicação, produção de sentidos e caminhos, surge aplicada a implosão/anulação cultural e a uma arquitetura que é sinal (pois, sinal…) dos tempos, e que Baudrillard desdenha. É triste lê-la associada a essa “carcaça de fluxos e de signos, de redes e de circuitos” (p. 81), o Beaubourg. Nada mais nada menos do que um centro cultural, polémico na sua arquitetura, e igual a zero, para Baudrillard.
Enfim, Baudrillard reduz as redes a cabos elétricos. Por isso, se Baudrillard estivesse vivo, certamente não veria benefícios na cibercultura. Até porque já há três décadas considerava que os media só nos vieram alucinar e confundir:
é praticamente impossível isolar o processo de simulação, pela força de inércia do real que nos rodeia, o inverso também é verdadeiro (e esta mesma reversibilidade faz parte do dispositivo de simulação e de impotência do poder): […] é doravante impossível isolar o processo do real e provar o real. (p. 31)
Não admira que os irmãos Wachowski (ou melhor, as irmãs Wachowski – há algo de baudrillarzesco nesta ironia transgender) tenham usado Simulacros e Simulação como chave que abre a caixa de Pandora em Matrix, para irritação de Baudrillard.
Ora a nossa visão das coisas é, provavelmente, mais próxima da de Pierre Lévy:
a tecnociência produziu tanto o fogo nuclear como as redes interativas. Mas o telefone e a Internet “apenas” comunicam. Tanto uma como os outros construíram, pela primeira vez neste século de ferro e loucura, a unidade concreta do gênero humano. Ameaça de morte enquanto espécie em relação à bomba atômica, diálogo planetário em relação às telecomunicações. (Cibercultura, 1999, p. 13)
Virilio também problematiza a condição humana a braços com a revolução tecnológica, mas com argumentos similares aos de Lévy.
Numa primeira análise, parece partilhar o mesmo fatalismo arrasador de Baudrillard:
Mais próximos daquilo que está longe do que dos nossos vizinhos imediatos, afastamo-nos progressivamente de nós próprios. Não é só o corpo cheio da terra que se perde e se desvanece aos nossos olhos; também o nosso próprio corpo se esbate por seu turno, tornando-nos «enfermos», de urna enfermidade sem igual, porque a deficiência da paralisia (ou do autismo) nos deixa ainda no nosso lugar, com uma massa ponderal imponente, ao passo que essa perda do corpo cheio do ser nos arrasta para o vazio, um «vazio» que nada tem em comum com o do espaço real (o intervalo), porque se trata desta vez do vazio de um ambiente virtual, de um espaço-tempo de que as técnicas de comunicação são simultaneamente a origem e o fim. (Virilio, Inércia Polar, p. 125)
E chega a dizer igualmente, a propósito dos avanços da tecnologia das imagens da comunicação que, perante a velocidade da tele-presença: “O mais provável, no entanto, é que o estatuto da realidade não resista por muito tempo a esta súbita iluminação dos lugares, dos factos e dos acontecimentos.” (p. 21).
Mas Virilio é mais físico do que semiótico: distingue tempo real de tempo diferido e valoriza a dromologia (p. 122) como lógica de (re)organização de todos os planos de ação humana, porque os nossos recursos são finitos e as nossas capacidades limitadas face à rapidez das máquinas e da tele-presença.
Hoje, com a instantaneidade, a ubiquidade e o imediatismo, atingimos o limite do nosso próprio poder com a ameaça de delegar esse poder a programas de computador e máquinas que são eficientes na questão de aceleração e que o homem não controla totalmente. (Penser la Vitesse, 00:03:42.21 – 00:04:02.20)
Retomando o a questão sobre uma eventual perda de noção do real, e embora não estejamos preparados para aceleração que a revolução tecnológica nos trouxe, parece haver forma de não nos entregarmos à droga depressiva que é a total imersão no mundo virtual:
É claro que podemos ser manipulados por imagens. Mas, quanto mais imagens, mais exposição ao som, ao texto e aos dados, mais o espetador, consciente ou não, destaca suas escolhas políticas, religiosas, antropológicas, etc. (Penser la Vitesse, 00:37:07.28 – 00:37:16.07)
Ou seja, há riscos. Sim. E as pessoas, a política, os meios de comunicação geram e procuram data a um ritmo e escala avassaladores. Mas… há espaço para o pensamento crítico. Há margem para a cibercultura se ajustar a esta nova revolução.
[1] Para Pierre Lévy, cibercultura é uma reorganização legítima de sentidos, “o surgimento de um novo universal, diferente das formas culturais que vieram antes dele no sentido de que ele se constrói sobre a indeterminação de um sentido global qualquer.” (Cibercultura, 1999, p. 12). Esta reorganização do nosso logos, da nossa –logia e do nosso ethos: “leva a co-presença das mensagens de volta a seu contexto como ocorria nas sociedades orais, mas em outra escala, em uma órbita completamente diferente.
A nova universalidade não depende mais da auto-suficiência dos textos, de uma fixação e de uma independência das significações. Ela se constrói e se estende por meio da interconexão das mensagens entre si, por meio de sua vinculação permanente com as comunidades virtuais em criação, que lhe dão sentidos variados em uma renovação permanente.” (idem).
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